Prosa íntima


Não é fácil a transição que alguns sofrem quando perdem o seu mundo real, (que na verdade era imaginário ou ilusório) e caem em um novo mundo, o mundo de Alvares de Azevedo. A beleza de tudo o que vivemos, através dos programas de televisão, se revela arma de manipulação, alienação, descobrimos que fomos enganados o tempo todo. Descobrimos que a maioria das pessoas está disposta a levar vantagem acima de tudo e de todos; descobrimos que não existe espírito de natal, que não há renovação e, que, embora sempre soubéssemos, morreremos e a vida continuará igual. Começamos a ler os olhares, as palavras, os gestos, começamos a ver melhor o mundo, e isso não é nada bom. Percebemos como tudo sempre é encarado com maldade e malícia, e como a maioria realmente age com maldade e malícia. Tornamo-nos incrédulos e amargos.

O poema de Álvares de Azevedo ilustra perfeitamente o meu desgosto com a humanidade e a minha descrença na salvação humana  e na paz mundial. Podemos dizer que o tempo propicia a evolução na sociedade, na maneira como ela lida com certos tabus;  a sociedade cria leis e as destrói, mas no fundo, cada ser humano continua o mesmo, sendo capaz de realizar as maiores atrocidades para ser sempre o melhor de todos, ter o máximo de poder possível.

Há seres humanos que acreditam no amor e na possibilidade de se criar uma sociedade evoluída, de paz e de respeito entre os indivíduos, propiciando um desenvolvimento social e humano, mas eu não sou um deles. Talvez, daqui a milênios, as pessoas possam se convencer de que o bem comum significa melhora na qualidade de vida individual, porém, qualidade de vida é um conceito que pode ser considerado relativo, já que cada um pode definir o seu nível de acordo com diferentes critérios. Na verdade, estamos falando da possibilidade ou não de se enfiar na cabeça dos seres humanos o conceito de qualidade de vida que englobe direitos comuns a todos, de não privação de necessidades básicas, além de o direito ao lazer, que também pode ser considerado como necessidade básica. Mas o que seria lazer? Viajar para Paris, ou ir ao cinema, ou ao bar tomar uma cerveja? Todos merecem ir a Paris? Lógico. Mas como propiciar tamanha igualdade que englobe todas as necessidades? Eu é que sei? nem quero saber. 

Eu só sei que estou de saco cheio de tudo. Os versos íntimos, são os meus versos.

Há pessoas que se enojam com o mundo, assim como eu. Há pessoas que não fazem parte desse mundo enojante. Há pessoas que não fazem noção que exista esse mundo enojante. Por essas, ainda suporto a existência e a socialização. Por essas, não perco a esperança de bem-aventurança, mesmo que em micro escala. Porque, pelas pessoas que vi catarem os defeitos dos colegas de trabalho, espionarem suas sacolas, pelas pessoas que vi roubarem projetos, subornarem com cestas básicas, pelas pessoas que vi roubar seus próprios parentes e continuar a sorrir, pelas pessoas que falsificaram empenhos destinados a obras sociais para financiar futilidades, pelas pessoas envolvidas com drogas e que eram coordenadoras de coisas relacionadas às crianças, pelas pessoas que se apropriaram de coisas alheias, que mentiram, que sentiram prazer em rir das desgraças dos outros, que deixaram o filho passar fome fingindo serem pais exemplares, pelas pessoas que vi trair os próprios amigos, os maridos, as esposas, os namorados, pelas pessoas que vi falsificando dados da própria mãe, pelas pessoas que cobram propina nas autoescolas e nas delegacias, pelas pessoas que encontro todos os santos dias, quepensam apenas em seu bem-estar, o que não seria errado se não prejudicassem intencionalmente os outros, por essas, o mundo poderia se acabar agora. Ando pessimista e cada dia mais. Evito notícias. Evito tragédias. Evito confirmar diariamente a minha constatação. 

O meu conforto é saber que ainda há gente linda. Gente gostosa, gente de verdade. Gente que não quer nada além de viver bem com todos. Esse é o meu conforto e a minha paz. Quanto ao resto, eu concordo e faço minha as palavras do poeta:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – era pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!


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