Olhos fugitivos





 Trabalho apresentado ao curso de Literatura II, Professora Elzira-UFOP sobre o livro Dom Casmurro de Machado de Assis.


            Os “olhos de ressaca” de Capitu, ou “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” serviram como argumentos persuasivos e evidenciais de toda uma suposta traição sofrida pelo autor/protagonista do famoso romance Dom Casmurro, tema bastante debatido tanto nos meios acadêmicos quanto em rodas de conversações informais. Sabendo-se que a história é narrada por seu protagonista, fica-nos óbvio o interesse em defender o seu ponto de vista e até mesmo os seus atos durante a sua trajetória, já que o acusador é parte totalmente interessada na condenação dos réus e na absolvição dos pecados do traído. Talvez, exatamente por ser parte interessada, Santiago ou Dom Casmurro é cuidadoso em suas falas, utilizando-se de sutileza, demonstrando indiretamente as qualidades das pessoas envolvidas.
            As qualidades de Capitu, como a capacidade de dissimular e controlar os seus sentimentos diante das mais tensas situações desde a mais tenra idade e sua facilidade em articular idéias, são os mais contundentes indícios de sua falha de caráter, o que justificaria os seus atos em relação ao casamento; mas há uma segunda parte envolvida nessa história e essa parte é denominada Ezequiel de Sousa Escobar. Ezequiel e Bentinho (como Santiago era chamado na adolescência) se conheceram no seminário e desde então se tornaram os melhores amigos e confidentes. Dom Casmurro assim descreve o jovem seminarista:

...Um rapaz de olhos claros, um pouco fugitivos, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo. Quem não estivesse acostumado com ele, podia acaso sentir-se mal, não sabendo por onde lhe pegasse. Não fitava de rosto, não falava claro nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem se deixavam apertar delas, por que os dedos, sendo delgados e curtos, quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada.O mesmo digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá....O sorriso era instantâneo, mas também ria folgado e largo.Uma coisa não seria tão fugitiva, como o restos, a reflexão;íamos dar com ele, muita vez, enfiado em si, cogitando.Respondia-nos sempre que cogitava algo espiritual, ou então que recordava a lição da véspera.Quando ele entrou na minha intimidade pedia-me frequentemente explicações e repetições miúdas, e tinhas memória para guardá-las todas, até as palavras.Talvez essa faculdade prejudicasse alguma outra.

            Nessa descrição inicial já podemos notar características que demonstram as qualidades que o autor deseja destacar em seu amigo; “olhos fugitivos” podem caracterizar tanto uma pessoa tímida como uma pessoa dissimulada, que não consegue mirar o seu interlocutor, que esconde algo atrás do olhar que não é capaz de sustentar. Assim como os olhos de Escobar, a sua maneira de falar obscura e as hesitações também demonstram o hábito de refletir muito ao se expor, outro indício de dissimulação. Outra característica destacada é a frouxidão do aperto de mão, o que simboliza também a fraqueza de caráter da personagem descrita. Tudo nele era fugitivo, de menos a reflexão; destaca ainda a curiosidade e a capacidade que Escobar tinha em guardar informações, e termina dizendo: ”talvez essa faculdade prejudicasse alguma outra.” Pode ser que aqui, Santiago quisesse insinuar que a grande capacidade de reflexão e memorização do amigo servisse para compensar algum defeito deste, deixando para o leitor mais uma pista. Todas essas qualidades destacadas, servem de certa forma, para preparar o terreno da suposta traição.
            Ao longo do romance o narrador vai destacando as qualidades de Escobar; nem mesmo a tia Justina, dama que sempre encontrava algum defeito em quem quer que fosse, conseguiu enxergar algo que desabonasse o belo amigo seminarista quando em visita à sua casa, ocasião em que este fora muito bem recebido e muito bem elogiado por todos da família de Bentinho. É natural que tamanha perfeição desperte em nós leitores alguma desconfiança, levando-nos a supor características obscuras e escondidas por trás de tanta beleza e docilidade.
            Mais tarde, em outras visitas à casa de Bentinho, Escobar também foi muito bem visto e elogiado, mas tia Justina encontrou, finalmente, uma qualidade para ele: “Olhos policiais a que não escapava nada”. O tio Cosme opinou dizendo que eram “olhos refletidos”. Mais uma vez os olhos aparecem como espelhos das almas e das intenções, as quais José Dias defendeu dizendo que uma coisa não impediria a outra, e que a reflexão casa-se muito bem à curiosidade natural. Reflexivos e curiosos, características já destacadas anteriormente e indicativos de um caráter digno de suspeitas, segundo os propósitos do protagonista.
            Com o passar do tempo, Santiago, já casado com Capitu, coleciona novos indícios que comprovam a teoria do narrador; pequenos segredos entre o melhor amigo e Capitu, como o dinheiro economizado por ela nas compras, e a presença do amigo em momentos em que Santiago não está em casa são alguns destes.
            Os dois casais, Capitu-Bentinho e Escobar-Sancha, estreitam cada vez mais a sua amizade, intensificando as atividades realizadas em conjunto. Bentinho e Capitu se lamentam por não terem filhos até que finalmente, Capitu engravida de seu primeiro e único filho, que se chamará Ezequiel em homenagem a Escobar. Todo esse clima deveria cultivar a confiança e o amor familiar, mas a suposta semelhança entre Escobar e Ezequiel desperta os ciúmes e as desconfianças de Santiago que só aumentam com o passar do tempo. Ao comentar sobre a semelhança entre a filha de Escobar e Ezequiel, Santiago justifica que Ezequiel imita os gestos dos outros, Escobar concorda e insinua que “algumas vezes as crianças que se frequentam muito acabam se parecendo umas com as outras”.
            Escobar aparece no romance como um homem de atitudes cautelosas, olhar fugitivo, pés inquietos e muito reflexivo. Suas habilidades mentais são exaltadas, como a capacidade de somar rapidamente números de vários algarismos, demonstrando um cérebro matemático e calculista; sempre gentil e amável, sabe conquistar elogios e arrebatar os corações gélidos. Dom Casmurro Vai pintando o retrato de Escobar de maneira em que possamos ver suas nuances contrastivas, sua personalidade calculista guardada por seu olhar fugitivo de maneira em que vejamos nele uma pessoa capaz de esconder um grande segredo friamente. Assim como Capitu, seus traços são delineados pelo narrador a fim de transmitirem a imagem que os olhos deste viram, ou que a sua mente elaborou, legitimando assim as suas suspeitas e seus atos perante o leitor e a si mesmo. Cuidadosamente as suas personagens são construídas sem que o leitor, muitas vezes, se dê conta de suas intenções, e assim, ao longo da trama, Dom Casmurro nos leva a crer em suas conjecturas; advogado que era, soube muito bem argumentar e nos dirigir para a direção que mais lhe foi conveniente, e sem que percebamos vemos algo estranho em Escobar, sentimos suas mãos frouxas, seus olhos fugitivos, desconfiamos de sua perfeição e até nos convencemos de que ele foi um dos culpados da tragédia que se abateu sobre Dom Casmurro.

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