As crianças que matamos


Gente é um troço engraçado. nascemos e começamos a interagir com os que nos rodeiam. Crianças pegam no seu cabelo se tiverem vontade, mesmo que seja a primeira vez que o vejam. Crianças correm e abraçam seus amiguinhos quando estão com saudades, crianças choram quando magoadas, crianças demonstram admiração quando uma pessoa bonita se aproxima e até pedem colo; crianças dançam quando ouvem música, mesmo que estejam dentro de um supermercado, e dançam com a alma, não apenas remexem os membros. Seres humanos em seu estágio primário de desenvolvimento não sabem o que é adequado, educado, polido. Apenas são quem são.

Um dia alguém vem e diz: Não pode dançar na rua, que ridículo! Não é educado falar da aparência das pessoas! Você tem que parecer forte, não chore por nada! Endireite esse corpo! Você não sabe dançar, nem tem corpo para isso! Não demonstre tanto que está apaixonado, se valorize! Não pareça ridículo! Então, você cresce.


Para viver adequadamente, precisamos conhecer as regras que nos tornem seres toleráveis dentro da sociedade. Se quisermos ser tolerados, não devemos fazer ou dizer tudo o que pensamos, se assim fizermos, o mundo se transformará em caos. Para nos adequarmos, vestimos máscaras frias e sorridentes e vamos também tolerando os intoleráveis da vida, desmanchando nossas vontades e reescrevendo as verdades.


Nesse reescrever, nos subscrevemos nos moldes rígidos e afastamo-nos do que nascemos para ser, é a sociedade. Não sabemos mais se sentimos e contemos tudo o que possamos desejar genuinamente, e isso se reflete em nossa maneira de agir e sentir. Tornamo-nos robôs movidos pelas necessidades criadas e programados pelas regras sociais da aceitação.

Chega um momento em que começamos a sentir falta de algo, de nós mesmos, e isso vai crescendo até que não possamos ignorar. Essa falta de nós vai nos incomodando, nos cutucando, até que torna-se uma ferida aberta impossível de não ser vista. Quando não mais a suportamos, vamos em busca de remédios que aliviem essa ferida de contenção do ser, pensando que há algo fora de nós que vai nos resgatar a nós mesmos. Alguns viajam até a Índia em busca do sagrado, outros vão ser possuídos em terreiros de umbanda, alguns caem nas igrejas através dos gritos de seus pastores, uns se entregam ao samba, muitos se acabam no funk, ou na biodanza. Há também os que escolhem o teatro como maneira de se libertar das amarras sociais, a música, ou qualquer outro tipo de arte. Há quem caia no encanto de drogas alucinógenas,  algumas sacralizadas como o Santo Daime. Cada uma dessas pessoas encontra esse momento para liberar o que não pode ser liberado cotidianamente e ser o que falta. Ser humano, com impulsos, desejos, carências e expressão. Reaprender a sentir, movimentar, tocar, se expressar acima de tudo. As pessoas precisam reinventar técnicas para ser de novo crianças e rever o mundo com olhos virgens e interessados, por alguns instantes, ou para o resto da vida.


Há muito sobre nós que não sabemos e talvez, nunca saberemos. Sabemos que existem coisas que os nossos sentidos ainda não estão aptos a captar, como as ondas de rádio e tantas outras coisas das quais nem podemos saber da existência. Há mistérios não desvendados e que passaram a ser ignorados, e há perguntas das quais nos esquecemos. Esquecemos-nos de notar o milagre que é um ser vivo emitir luz ou mudar a cor de sua pele, ou até mesmo, produzir eletricidade. Esquecemos de observar que uma abelha já nasce sabendo construir sua colmeia e uma tartaruga, que tem que correr para o mar. Animais nascem sabendo, e nós ainda somos animais. Mas, sabemos apenas que o pouco que podemos captar através de nossos sentidos é capaz de causar alterações em nosso cérebro e nos levar para outro estágio de consciência, como os sons e as imagens. sabemos que as palavras possuem poderes, pois elas são a representação do real e torna real suas representações. Sabemos que a fé transforma, qualquer tipo de fé, pois ela move e comove. Dessa forma, artifícios sociais que fogem das rotinas sociais (antagônico?), servem bem ao seus propósitos, ajudando-nos e permitindo-nos a ser e a transcender com suas teorias, promessas ou perguntas. Nesse espaço permitem-nos e permitimo-nos a ser tudo e a liberar tudo, para depois re-vestir a máscara dura, boazinha, profissional e sorridente, sem toda a tensão causada pela ferida aberta.


Quem dera pudéssemos ser, apenas. Mas a sociedade nos distorce e depois precisamos de artifícios para relembrar quem éramos. 

Ignorando os charlatanismos, o moralismo, os supostos efeitos nocivos que alguns elementos possam causar, os modismos e tudo o que possa parecer negativo, é bom que existam estratégias para que nossas armaduras de robôs não se explodam e para que sejamos capazes de tolerar o teatro que criamos para nós mesmos.


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